quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Carta ao Dr. Miguel Sousa Tavares

 Foi partilhado hoje no Facebook uma carta em resultado de um assunto comentado na SIC pelo Sr. Dr. Miguel Sousa Tavares, que indignou muitas pessoas, entre as quais também a mim. Por isso copio esta carta, que por certo é da vontade da professora em divulga-la, mas também é o que pensam muitos que ouviram a palavras do Miguel Sousa Tavares.
António.

"A propósito do financiamento dos estabelecimentos de ensino com contrato de associação, escrevi uma carta ao jornalista Miguel Sousa Tavares...
Porto, 3 de Fevereiro de 2011


Excelentíssimo Senhor
Dr. Miguel Sousa Tavares


Faço parte dessa larga franja de audiência televisiva que, com alguma regularidade, abandona as lides domésticas em “hora de ponta”, para assistir às suas intervenções na SIC. Trata-se de um exercício de teimosa afirmação de soberania que realizo, semanalmente, sob protesto dos mais jovens habitantes de minha casa.
Embora nem sempre partilhe das suas opiniões, aí invisto alguns minutos do meu tempo. E lá fico seduzida pela imagem, reconfortada pelo tom descomprometido e provocador das palavras.
Agrada-me que pense e diga o que pensa sobre as coisas, mesmo quando fere susceptibilidades e conveniências. Confesso-me leitora frequente do Expresso, curiosa espreitadora da sua ficção. Às vezes comento os seus comentários, concordo, discuto, revejo ideias…
Raramente escrevo. Porque, excepção feita aos textos do meu ofício, virtualmente armazenados em discos de computador, esgoto sempre as palavras e respeito quem melhor sabe escrever. Mas a sua intervenção no programa informativo de 31 de Janeiro fez-me ganhar coragem para, uma vez que fosse, lhe fazer chegar o que costuma ficar entre as paredes da casa.
Questionado sobre o novo modelo de financiamento do Ensino Particular e Cooperativo e a contestação por este gerada, entre associações de pais, professores e políticos, terá o Doutor tecido algumas considerações que me pareceram pecar por demasiada ligeireza e algum desconhecimento da matéria.
Pelo que percebi, em seu entender, o Estado não deve financiar prestadores de serviços privados. Concretamente na área da Educação, o processo de requalificação das escolas públicas implica o corte do financiamento dos estabelecimentos com contrato de associação. A situação supletiva criada há trinta anos não tem razão de existir, actualmente. Mais ainda, as razões do descontentamento manifestadas pelos pais dos alunos desses estabelecimentos de ensino não o convencem. Se a memória não me atraiçoa, em seu entender, se os pais desejam escolas de qualidade para os filhos, que as paguem.
Jamais ultrapassaria a minha anónima condição de espectadora, se tivesse dúvidas sobre a genuína verticalidade das suas convicções. Porque acredito ser homem de valores e carácter, entendi que valia a pena incomodá-lo com a minha visão pessoal da questão.
Há pouco mais de vinte e cinco anos, recentemente concluída a Faculdade, surgiu a oportunidade de ensinar numa cooperativa de ensino, situada a algumas dezenas de quilómetros do Porto, onde ainda resido. Dessa região, guardava apenas memórias de infância, de passeios de colégio e esplêndidos fins-de-semana.
Como qualquer jovem em início de carreira, tive de me esforçar por me adaptar ao meio e merecer o salário que auferia. E, com o passar dos anos, fui testemunhando as transformações que os tempos ditaram. O meu local de trabalho foi-se tornando segunda casa e fui-me habituando a reconhecer na agência bancária, na bomba de gasolina, no café e em todos os lugares da vila, gente que ajudei a crescer.
Hoje, ensino os filhos dos meus alunos. Tenho amigos espalhados pelos quatro cantos da vida e colegas que foram meus discípulos também. E, embora continue a ser apenas mais uma professora, gosto de acreditar que participei na construção de um projecto essencial ao desenvolvimento da região. Criada por gente da terra, a minha escola soube melhor servir, ajustar-se e singrar, mercê da competência, espírito empreendedor e sensatez dos que a fizeram crescer.
Ao longo de trinta e cinco anos de existência, aprendemos a ultrapassar momentos difíceis, privando-nos, trabalhando, procurando fazer melhor. E, sempre que nos foi possível, investimos (ainda que, enquanto cooperativa, cada parede erigida seja, em última instância, património de um instituto do Estado).
Actualmente, a cooperativa emprega quinhentas e cinquenta pessoas que garantem o funcionamento de dois estabelecimentos de ensino, frequentados por vários milhares de alunos.
Não temos campos de golfe ou ténis, nem piscinas, ou equitação. Temos salas de aula confortáveis e quentinhas, laboratórios, oficinas, cantinas, bibliotecas, ginásios, pavilhões, campos de jogos e o aconchego que a muitos falta. Temos carrinhas onde os nossos alunos podem viajar, entre a escola e suas casas, em comodidade e segurança… Luxos, na sua opinião. Melhor, luxos que, em seu entender, devem ser pagos pelos pais.
Que bom seria para todos nós que isso pudesse acontecer, Senhor Doutor! Que bom seria que hoje não fôssemos este país triste e envergonhado, que pede esmola para pagar juros do que não soube investir! Que bom seria que o Estado e todos os governos democraticamente eleitos fossem competentes, bons gestores e donos da razão!
Infelizmente, Senhor Doutor, os pais dos nossos alunos, como os da maior parte do país, não podem pagar. Servimos uma população pobre, tradicionalmente dependente de uma indústria têxtil moribunda e de subsídios. Gente humilde à espera que os seus impostos também sirvam para pagar a educação dos filhos. Conhecem-nos, confiam em nós, encontram nesta escola uma resposta adequada às suas necessidades e um motivo de orgulho para a região.

E que dizer da Escola Estatal, senhor Doutor?
Incompreensível, concordo, o estado de degradação e abandono a que chegou grande parte das respectivas instalações. Nos últimos vinte anos, construíram-se demasiados quilómetros de auto-estradas e vias rápidas que o OGE não consegue manter. (Pagaremos todos nós e as gerações futuras, directa ou indirectamente, a empresas pomposamente criadas para essa função.) E, como este, tantos exemplos da insensatez e má gestão de sucessivos governos!
Transformados num país de consumidores, produtores de serviços e desempregados, caímos numa espécie de embriaguez colectiva que parece não ter ainda chegado ao fim.
De porte elegante e frágil, a Senhora Ministra da Educação pestaneja e apregoa a justeza dos seus propósitos. Atenção, muita atenção! É desta que vamos ter a tão aguardada Reforma. Do sistema? Ainda não, que as paredes ficam melhor em imagens da televisão. Comprime-se o currículo, despedem-se alguns milhares de professores que, no meio de milhões, passarão despercebidos...
E se, mesmo assim, não houver dinheiro para a dita requalificação do parque escolar estatal? Condene-se à extinção o Ensino Particular e Cooperativo, que agora será supletivo. Esvaziem-se essas escolas, que afinal, em minoria, são mais fáceis de abater que sindicatos e gente desagradável. Peçam-se mais milhões, crie-se mais uma concessionária gestora do património… (Cá ficaremos nós e os nossos filhos obrigados a pagar, durante décadas, o que o Estado deixou ruir.) E se não têm pão, comam brioches!
Decretando a escola dos serviços mínimos, formato único a servir a toda a população, acentuam-se desigualdades, em nome da modernização. Descarta-se o que de bom se tem feito, inventam-se números, que a factura virá depois…
Em nome e a bem da Nação, quer a Senhora Ministra legitimar os seus decretos. Demagogicamente, rotula, censura, intoxica. Não sei se de consciência tranquila, se por fidelidade institucional, ignora, desconhece, confunde. E da verdade não diz. Não explica o que o Estado (não) fez, décadas a fio, em prol da educação. Como pôde adiar sistematicamente reformas? Por que se demitiu e desperdiçou? Com que impunidade se arroga o direito de quebrar compromissos, deixando dezenas de escolas em ruptura? Interesse público? Mas de que interesses se trata, afinal?
Talvez seja tempo de sermos verdadeiramente corajosos e livres, de aceitarmos que o modelo do Estado omnipotente e protector se esgotou e que o bom serviço público é aquele que serve melhor os cidadãos, independentemente de partir da iniciativa privada ou estatal.
À distância, tudo é muito simples e todos podemos ignorar. Não fora eu testemunha do que se está a passar e talvez aceitasse a lógica quase matemática dos argumentos. Como não sou dona de nada, senão da minha consciência, senti que, por uma vez que fosse, valia a pena expor os motivos da minha indignação. Não sei se, como eu, fiel consumidora das suas palavras, dedicará o Senhor Doutor alguns minutos do seu tempo e paciência a ler o que agora escrevo. Se o fizer, sentir-me-ei muito grata.
Sei como outros falharam no intento de o convencer e portanto nem ousaria tentar fazê-lo mudar de opinião. Em todo o caso, lanço-lhe o desafio de nos visitar, como tantos já fizeram (estrangeiros e nacionais; políticos, economistas, nomes sonantes da Nação…) e conhecer de perto a matéria que ajuíza. Se a tal não se dispuser, todos nós nos encontramos na Internet, à distância de um clique no rato do computador.
Encontra-nos de norte a sul e somos muito mais que os números conhecidos: dezenas de escolas, milhares de professores, funcionários, alunos, famílias… Gente. Daquela que se esforça por merecer, trabalha e sustenta os filhos. Pessoas que têm dado o seu melhor para melhor servir aqueles que foram até hoje esquecidos.
Por favor, visite-nos, real ou virtualmente. A mim poder-me-á encontrar em Riba de Ave. Terei o maior prazer em lhe mostrar pessoalmente a minha segunda casa.

Uma vez mais, agradeço a atenção.


Com os melhores cumprimentos



Ana Isabel Barreto Costa e Afonso Vigário"

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